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Tribunal Judicial da Comarca de Almada |
Após
mais de três anos decorridos sobre a denúncia, no Tribunal de Almada, de
eventuais negligências em cadeia que podem ter sido a causa próxima da morte de
uma pessoa, o Ministério Publico, segundo o despacho de arquivamento, não
conseguiu ouvir a única testemunha arrolada, por desconhecer o seu paradeiro. O
ofendido conseguiu localizá-la, em menos de 10 minutos, numa pesquisa no
Google.
O caso
que vos trago hoje, é, infelizmente, real. Não ocorreu em qualquer país da
África profunda, ou da América andina, mas em Portugal. Não no século XIII ou
XIV, mas no século XXI, em 2009. Também não se passou em qualquer aldeia
esquecida da planície alentejana nem perdida na serrania transmontana, mas em
Almada, uma das maiores cidades do País, à beira de Lisboa, com o Tejo a
uni-las (ou separá-las …).
Por
razões óbvias de privacidade uso nomes fictícios. Tudo o resto é real.
Em
16 de Julho de 2009, Adélia, de 68 anos, vinha apresentando sintomas de
obstipação que já tinham sido causa de visita médica domiciliária, efectuada
por pedido dirigido aos Anjos da Noite, na qual foi diagnosticada a patologia e
passado receituário que o clínico considerou adequado à situação. Tendo passado
o dia acamada, Adélia deslocou-se para a saleta, onde costumava ver televisão e
sentou-se acompanhada de Bruno, o marido que completaria 71 anos no dia
seguinte.
Cerca
das dez da noite, Adélia mostrou desejo de voltar a deitar-se, pedindo a ajuda
do marido para se levantar do sofá em que se tinha instalado.
Ao
tentar levantar-se, não conseguiu, mesmo com a ajuda do marido. Tinha perdido a
força.
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Não havia pessoal nem material disponível, segundo os responsáveis do CODU |
Alarmado,
Bruno ligou para o filho do casal, Carlos, que estava a acabar de jantar,
descrevendo o estado em que a mãe deste se encontrava, e, de seguida ligou para
o 112, descrevendo pormenorizadamente a situação e pedindo uma ambulância para
transportar a doente para o Hospital Garcia de Orta, tendo obtido como resposta
que não tinham ambulâncias disponíveis sugerindo que Bruno transportasse a
doente, pelo meio que entendesse, inclusivamente de táxi. Bruno insistiu,
argumentando que se não conseguia levantar Adélia do sítio onde se encontrava,
muito menos conseguiria descer com ela um lance de escada até ao elevador, para
já não falar nos cinco degraus, depois da saída do elevador, até atingir o
nível da porta da rua.
O
interlocutor, permaneceu irredutível na sua posição de afirmar a
impossibilidade de resolver o problema, tendo Bruno, após esta chamada, ligado
para os Anjos de Noite, pedindo uma domiciliária, com a máxima urgência, o que
foi satisfeito, em poucos minutos. Entretanto Carlos já se encontrava em casa
dos pais.
Quando
a Dr.ª Marina, enviada pelos Anjos da Noite viu a paciente exclamou: «Esta
senhora já devia estar no Hospital. Não gosto nada do que estou a ver!».
Bruno
contou resumidamente a conversa que tinha tido via 112, e a recusa, da
prestação do serviço. Em seguida ligou de novo para o 112 e entregou o telefone
à Dr.ª Marina, que durante vários minutos, insistiu, tendo a chamada sido
transferida para vários departamentos, inclusivamente, chegando a perguntar ao
colega com quem falava a certa altura, se ele se responsabilizava pelas
consequências da recusa do envio ao domicílio de uma equipa médica do INEM, e a
ambulância para o transporte da doente. Não conseguiu mais que a deslocação de
uma ambulância dos Bombeiros de Almada tripulada pelo condutor e um paramédico.
A
doente encontrava-se numa situação em que nem a tensão arterial, demasiado
baixa, conseguiram medir, senão após várias tentativas. Por fim, lá foi transportada
pela ambulância para o Garcia de Orta, acompanhada por Bruno, seguida pela Dr.ª
Marina, no carro dos Anjos da Noite, até à porta do Hospital, cerca da uma hora
do dia 17 de Julho. Carlos deslocou-se também no seu carro, para o Hospital.
Chegada
ao Hospital, e presente na triagem, colocaram-lhe uma pulseira verde,
transferiram-na para uma maca do Hospital e levaram-na para a zona de urgências.
Depois
das três da madrugada, Bruno, não tendo notícias da doente, conseguiu que uma
enfermeira lhe dissesse que iriam fazer exames, que Adélia não teria alta tão
cedo e que fosse para casa descansar, voltando de manhã, para saber notícias. Foi-lhe
permitido permanecer alguns minutos junto da doente, antes de ir para casa.
Na
manhã seguinte, Bruno e Carlos chegaram ao Hospital, tendo Carlos seguido para
o emprego, acompanhado do mulher, tendo combinado com o pai que este iria
telefonando à medida que colhesse informações sobre o estado da doente.
Cerca
das 10 horas Bruno foi chamado, na sequência de um pedido de informação que
tinha entregado, sendo-lhe dito que ainda não havia um diagnóstico conclusivo,
que aguardavam resultados de exames e que possivelmente, Adélia ficaria
internada. Foi conduzido junto da doente, que apresentava um aspecto bastante
debilitado, a qual lembrando-se do dia de aniversário do marido, ainda lhe deu
um beijinho de parabéns, ao que este respondeu, que o que queria era que ela se
pusesse boa tão breve quanto possível. Depois de vários minutos, Bruno saiu de
local, com a promessa de que ao meio dia estaria ali de novo, indo telefonar ao
filho para lhe contar a visita que acabara de fazer.
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No Hospital Garcia de Orta: pulseira verde e horas e horas de esper |
Ao
meio dia, como prometera, Bruno estava de novo com Adélia, que rejeitava a
sugestão de refeição, visivelmente mais enfraquecida, acabando após muitas
insistências de uma Senhora, Voluntária, de aceitar um iogurte, que a mesma
senhora lhe deu à boca.
Mal
ingeriu o iogurte a muito custo, Adélia teve uma crise de vómitos. A Senhora
que a tinha ajudado foi buscar uns toalhetes, com os quais a limpou e quando se
dirigia para o recipiente do lixo para depositar os toalhetes sujos o rosto de
Adélia assumiu uma expressão que parecia de espanto, com os olhos mais abertos
e o olhar parado dirigido ao infinito. Bruno chamou uma enfermeira que passava
na altura pelo local, que vendo a paciente, agarrou e empurrou a maca, em
corrida, enquanto gritava o nome de um médico. Bruno ficou especado, não sabe
se segundos, se minutos, até que alguém lhe perguntou porque é que estava ali,
ao que respondeu, que queria saber o que se passava com a sua mulher. Ouviu a
voz feminina que o interpelara, indicando-lhe um balcão de atendimento médico,
que o doutor é que o podia informar.
Bruno
chegou à entrada do balcão, tendo o médico que lá estava, a escrever qualquer
coisa, levantado a cabeça para lhe perguntar o que desejava.
-
Internei-a. Não seio se já subiu …
-
Acabam de a levar, a correr, para aquele lado!...
E
ele próprio seguiu o caminho por onde tinham levado a maca …
Bruno
chegou à rua e telefonou logo para Carlos, que pediu ao Pai que esperasse por
ele, pois iria sair de imediato com a mulher, Dália, que trabalha na mesma
empresa.
Bruno
ficou aguardando a chegada do filho e da nora, na sala de espera.
Quando
chegaram Dália, foi falar com alguém e regressou dizendo que o Dr. Teodoro
queria falar com todos, o que aconteceu pouco depois.
O
Dr. Teodoro disse resumidamente, que que quando entrou no turno da manhã notou
que a doente Adélia estava há muitas horas sem assistência e que o seu estado
aparentava então ser grave, pelo que em face de exames que pediu e da
sintomatologia da doente, procedeu ao seu internamento, ficando a aguardar vaga
no piso respectivo, que a doente não tinha conseguido sobreviver, e que dadas
as circunstâncias em que tinha ocorrido o falecimento, iria requerer autópsia
judicial, só após a qual o corpo seria entregue à família para procederem ao
respectivo funeral.
O relatório da autópsia, além de mencionar como
causa da morte uma peritonite, com perfuração do intestino, declarava não haver
suspeitas de qualquer acto criminoso que tivesse contribuído para a morte da
doente.
Não
satisfeito com o que parecia uma jogada de defesa, fazendo tábua rasa de uma
série de deficiências desde o pedido feito, cuja satisfação foi recusada pelo
INEM, à pulseira verde, atribuída na triagem, culminando no número de horas em
que a doente permaneceu abandonada na urgência do Garcia de Horta, Bruno apresentou
denúncia dos factos no Tribunal de Almada.
Em
29 de Outubro de 2012, foi depositada na caixa de correio do denunciante uma
notificação do Tribunal de Almada, datada de dia 10 do mesmo mês, dando
conhecimento do despacho de arquivamento do processo respectivo.
Segundo
o despacho, «não foi possível inquirir Marina Klico, «cujo paradeiro é desconhecido.»;
«O
auto de transcrição das conversas de (…) e (…) com
uma operadora da linha de atendimento do INEM e Marina Klico com operadores e
um médico da mesma linha, confirma genericamente, a parte inicial da denúncia.»;
«A
Inspecção-Geral das Actividades em Saúde em nada contribuiu para o
desenvolvimento da presente investigação.»; é reconhecido, claramente,
que a assistência prestada a Adélia «esbarrou em circunstâncias que não deviam
ter ocorrido, no entanto, a imprevisibilidade ou, pelo menos, difícil
previsibilidade, de algumas delas não deixaram margem para concluir no mínimo,
pela não verificação de negligência na actuação dos intervenientes,
verificando-se, sim, a existência de evidentes falhas administrativas
relativamente a recursos humanos e materiais que conduzem a situações sem
retorno, ficando sempre a dúvida. Como é o caso concreto, sobre se (…),
poderia estar viva se a sua assistência tivesse sido mais rápida.
Mas não tendo a investigação superado aquela dúvida, não é possível
extrapolar que os factos não teriam a mesma conclusão caso o atendimento de (…)
tivesse sido mais célere, não sendo, desde logo, sequer possível imputar
criminalmente a responsabilidade pelo tempo decorrido. Seja porque o INEM não
tinha meios disponíveis de transporte de doentes, seja porque os sintomas de (…), aparentemente, não revelavam a
gravidade real do seu estado, atrasando o seu atendimento perante outras
situações, aparentemente mais graves.
Pelo exposto, determino o arquivamento dos autos, nos termos do art.º
277º, nº 2 do Cod. Processo Penal.».
Recebida
a notificação, em chamada para os Anjos da Noite, Bruno confirmou que a Dr.ª
Marina já não trabalha lá há muito tempo e desconhecem onde se encontra
actualmente.
Em
consulta digitando, no Google, “Marina Klico”, aparece, referenciada na Região do Algarve
da ACSS, Marina Iourievna Atkina Klicó, colocada em Medicina Interna no
Hospital Central de Faro.
Em
contacto com o Hospital Central de Faro, Bruno pediu para ligarem à Dr.ª Marina
Klicó, o que se tornou difícil, por a linha interna de “Medicina 1” apesar de
chamar durante largos minutos não ter ninguém a atender as chamadas. Ocorreu-lhe
ligar para o Gabinete de Comunicação. A senhora que atendeu tentou a ligação e
também não conseguiu ser atendida. Sugeriu a Bruno que deixasse o contacto, que
ela, ou um colega, entregaria à Dr.ª Marina, que telefonaria posteriormente.
Mais
tarde, Bruno recebeu uma chamada. Era a Dr.ª Marina. Confirmou ser a mesma
médica que estava ao serviço dos Anjos da Noite em Julho de 2009. Bruno perguntou-lhe
se se recordava da domiciliária efectuada na noite de 16 de Julho.
Durante
cerca de uma hora e meia ao telefone, não se lembrou. Disse que essa altura de
2009, foi de imenso trabalho com inúmeras visitas domiciliárias, varias a
doentes em situação muito grave. Chegou a recordar um caso, da mesma altura,
mas não correspondia ao de Adélia. Várias vezes lamentou não ter sido
contactada pelo Ministério Público quando a memória poderia, ainda, estar
fresca. O depoimento dela seria de nenhuma ou pouca valia.
Bruno
percebeu que requerer a abertura da instrução seria gastar dinheiro, sem que fosse
apurada qualquer responsabilidade.
Não
posso acabar exte texto sem deixar algumas perguntas:
Que
raio de serviços são estes que o Estado nos oferece cada vez mais escassos e
mais caros?
Se
há meio século os Oficiais de Diligências – lembram-se dessa profissão? –
andavam por campos e vales, a fazerem notificações, e faziam-nas!, não pode um
oficial de Justiça, ou como se chamará agora o profissional equivalente, teclar
um nome num computador e localizar pessoas, sem sair do seu gabinete?
A
Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, foi chamada a investigar alguma
coisa, e se o foi fez alguma investigação, ou limitou-se a falar com colegas,
numa atitude meramente corporativa?
Por
que não se legisla no sentido considerar obstrução à Justiça – julgo que é
crime! – a falta nítida de colaboração de um serviço público, relativamente a
uma ordem ou pedido judicial de esclarecimento?
Se o
auto de transcrição das chamadas prova a veracidade da parte inicial da
denúncia, o despacho reconhece a existência de evidentes falhas administrativas
relativamente a recursos humanos e materiais que conduzem a situações sem
retorno, leia-se: fatais, por que não se encaminham estes processos para apurar
as responsabilidades de quem sangrou, e continua a sangrar, o Estado dos meios
necessários à prossecução dos fins para que foi constituído e que são a razão
da sua existência?
Uma
pergunta final, a propósito do paradeiro da Dr.ª Marina: alguém se terá
lembrado de perguntar aos serviços do Senhor Gaspar?
Setúbal, 13 de Novembro de 2012